Nuvem – [2019]

“Nuvem” é um espetáculo binaural onde o público entra aos pares a cada 3 minutos. A obra investiga o fluxo da comunicação atual entre a psique contemporânea e os servidores de dados virtuais. Teriam as nossas palavras e ações um destino sombrio? Jef Telles caiu nessa armadilha sem volta, desse labirinto infinito. Passado e futuro se confundem numa senzala de vaidades e atrocidades naturais. O caminho é solitário, onde você faz as suas próprias escolhas.


 

PERFORMERS: Marcelo Matos, Cassio Henrique, Marcelo Nogueira, Cia do Santo Forte, Wagner Orniz

CONCEPÇÃO, DIREÇÃO, IMAGEM E SOM: Jef Telles

ATUAÇÃO AUDIOVISUAL: Jef Telles

PRODUÇÃO: Daniela Honório

FOTOGRAFIA: Jorge Etecheber

 

Crítica [por Júlia Guimarães]
“O que olha para as nuvens nunca cegará”

Em livros, séries e outras obras artísticas, o imaginário distópico deste início de século surge muitas vezes associado a formas intensas de controle, viabilizadas pelas tecnologias contemporâneas. É também essa perspectiva que aparece como eixo do espetáculo “Núvem”, criado pelo Agrupamento Núcleo 2, de São José do Rio Preto. A partir de uma dupla referência, o título alude tanto aos gigantescos servidores de dados virtuais existentes atualmente como também às partículas de água que se formam no céu, sendo a contemplação da segunda pensada como gesto de resistência contra a total colonização da subjetividade propiciada pela primeira.
Dirigida por Jef Telles, que é também o protagonista da história, “Núvem” é construída como uma autoficção, ou seja, uma narrativa que hibridiza informações reais com dados ficcionais. Um elemento que confere originalidade ao trabalho é a investigação de linguagem do grupo, que alia performance, videoinstalação e o mecanismo binaural, caracterizado como um som em três dimensões que reproduz o ouvido humano, transmitido a nós no espetáculo por meio de fones.
Inicialmente em duplas e posteriormente sozinhos, somos convidados a percorrer diferentes espaços a partir de escolhas prévias, que nos dão pistas sobre o conflito vivido pelo protagonista. Ao destinar ao público a decisão sobre quais itinerário seguir, “Núvem” subverte a habitual relação de hierarquia do tempo sobre o espaço presente nas artes cênicas, na qual a duração é o que usualmente organiza a experiência do espectador. A partir dessa inversão, a obra aproxima-se da estrutura de um museu, onde o visitante fica livre para percorrer o espaço durante o tempo que desejar.
No decorrer desse itinerário, em que passeamos tanto por um galpão com paredes de tijolos como também por espaços abertos, somos convidados a fazer escolhas: eleger entre o “Barulho” ou o “Silencio”, o “Edifício” ou a “Construção”, a “Alucinação” ou a “Memória”. Cada uma dessas palavras aparece impressa em banners afixados em um determinado local da obra. Em cada uma dessas “ilhas”, somos convidados a vivenciar uma experiência sensorial específica, que vai desde o convite para entrar em um carro e escutar uma narrativa sonora tridimensional sobre uma cidade de vidro (“Edifício”) até assistir a um vídeo (“Alucinação”) no qual Jef Telles parece pedir socorro ao público por meio de mensagens escritas, nas quais lemos frases como “clonaram meu amigos, dublaram seus discursos” ou “privatizaram a imaginação (…) e a sensibilidade”.
Pouco a pouco, compreendemos que a peça pode ser lida como uma tragédia contemporânea e que a transgressão do protagonista parece ser justamente a decisão de seguir fazendo arte e não se deixar controlar. Ao lado dessa perspectiva propriamente dramática, a obra também propõe uma investigação conceitual sobre o tema proposto, como ocorre no espaço intitulado “Barulho”.
Ali, somos introduzidos ao conceito de panóptico – inicialmente proposto pelo filósofo Jeremy Bentham no século XVIII e retomado por Foucault nos anos 1960 – que designa estruturas arquitetônicas nas quais todos podem ser observados sem saber exatamente quando e por quem estão sendo vigiados. No entanto, o grande paradoxo da “sociedade da transparência” atual – explicitado em “Núvem” – é que o controle surge viabilizado em parte pelo nosso próprio voluntarismo, ao compartilharmos diariamente uma infinidade de dados pessoais nas nuvens de nossas redes sociais ou quando usamos nossos dispositivos eletrônicos.
Embora o discurso sobre os mecanismos de controle atuais tenha se esvaziado em alguma medida pela própria frequência com que se repetem – como exemplo poderíamos citar fenômenos midiáticos distintos como o programa “Big Brother”, o seriado “Black Mirror” ou o filme “Snowden – herói ou traidor” –, as formas encontradas por Jef Telles para refletir sobre esses temas reconfigura o problema justamente ao radicalizar a hibridação entre diferentes linguagens artísticas.
No seu diálogo com a videoinstalação, merece destaque o espaço “Calabouço”, no qual o personagem que interage conosco é visto em um televisor disposto no chão do espaço. No vídeo, a câmera está situada no alto de uma escada, de modo que vemos Telles de cima pra baixo, confinado em sua prisão. “Ei, você tai?” – nos pergunta o personagem, após subir nessa escada para tentar “aproximar-se” de nós, em um jogo de interação entre a imagem virtual do personagem e nossa presença naquele espaço. “Eu sei que eu sou uma pessoa editada. Mas eu não quero desaparecer”, confidencia-nos.
Nesta e em outras passagens, o público adquire um papel dramatúrgico na obra, sendo pensado como uma espécie de interlocutor-cúmplice de Jef Telles. Somos interpelados não apenas a conhecer o drama do protagonista, como também a resistir às formas atuais de controle, sobretudo por frases sussurradas ao pé do ouvido por meio dos fones: “o que olha para as nuvens nunca cegará”, revela-nos o protagonista, em áudio escutado no interior de um carro.
Ainda que nossa interação com o artista ocorra sobretudo por meio de gravações, em dois dos espaços propostos nos deparamos com figuras de carne e osso – os atores Cassiano Henrique e Marcelo Matos. Na sala “Holografia”, um homem rodeado de livros e atônito diante de uma tela de computador é quem nos fornece a senha (“eu quero a verdade”) para, de algum modo furar, o bloqueio do labirinto de virtualidades daquele espaço.
Já em outros momentos, quando somos convidados a refletir sobre o ato em si de fazer escolhas, compreendemos que é justamente o poder de decisão – inserido na própria estrutura dramatúrgica do espetáculo – aquilo o que nos garante um resquício de autonomia às nossas subjetividades.
É curioso observar como a dimensão sensorial do derradeiro espaço da obra – intitulada “Mentiroso” – está vinculada à própria materialidade dos corpos. Ali, recebemos uma generosa sessão de massagem nas costas enquanto somos incitados a procurar uma saída: “sempre vai existir uma”, nos propõe o massagista.
Nesse desfecho, seria possível associar o próprio contato humano não mediado por dispositivos eletrônicos com as possibilidades de furar as bolhas de vidro das sociedades de controle contemporâneas. Trata-se de uma proposição que poderia ser pensada inclusive como homenagem às chamadas “artes vivas”, na medida em que a compreensão de uma possível saída passa pela situação de uma copresença imediata entre artistas e espectadores.
A despeito da construção dramatúrgica que a obra propõe – na qual, como detetives, colhemos pistas sobre o estado mental de Telles na medida em que realizamos escolhas – do ponto de vista técnico, a apresentação ocorrida no Centro Cultural Clemente Gomes no último sábado dificultou a clareza no entendimento da proposta. As orientações recebidas em áudio nem sempre eram fáceis de compreender, como foi o caso da opção inicial pelo “barulho” ou o “silêncio”, cuja localidade não correspondia às instruções dadas. Talvez a existência de um mapa ou de outros mecanismos de sinalização já resolveriam o problema.
Além disso, a profusão de informações aleatórias em cada espaço por vezes dificultava uma compreensão que favorecesse a atividade imaginativa e intelectual do espectador. Uma vez que a dramaturgia é composta por uma série de frases fragmentadas, densas e filosóficas, acumuladas a cada espaço percorrido, talvez fosse interessante valer-se de algum dispositivo que permitisse sua retenção na memória do espectador por mais tempo do que o recorte temporal do espetáculo.
Uma vez que muitas dessas frases nos eram transmitidas por meio de arquivos reproduzíveis (como vídeos e áudios), a internet poderia ser pensada como plataforma que pudesse servir de complemento para a experiência cênica, uma espécie de convite para deter-se um pouco mais na complexa teia dramática e conceitual elaborada por Telles.
Pois assim como em um quebra-cabeça, a experiência perceptiva de “Núvem” parece funcionar como uma dramaturgia dilatada no tempo, na qual, aos poucos, vamos juntando peças para acompanhar, sensorialmente, as angústias existenciais de um mundo no qual boa parte de nossas decisões e pensamentos estão previamente programados por algoritmos.